· Tudo começou com a cauda longa,
brilhantemente explicada por Chris Anderson em "the long tail" sobre
a segmentação em nichos, uma cultura e economia que estão mudando do foco de um
relativo pequeno número de hits (que ficam no topo da curva, ou seja, produtos
com muita saída no mercado), para um elevado número de nichos na cauda (bem
específicos e segmentados). Ainda que a ponta da cauda seja menor,
economicamente pode ser tão atrativos quanto vender produtos para as massas.
A tecnologia e o digital permitiram
atender aos mais diversos gostos e também deram voz às pessoas. Assim, o foco
nos nichos cresceu.
E se olharmos ao redor vamos
perceber que já não dependemos mais de poucas fontes de informação ou da
"mídia tradicional", como há alguns anos. E existe um reflexo até
mesmo quando fazemos compras. Nas lojas físicas, por exemplo, encontramos
"produtos para as massas", com pouca personalização e diferenciação.
Já na internet, conseguimos encontrar itens específicos e personalizados, isso
porque nesse modelo de negócios o espaço na prateleira não está mais em jogo,
afinal, ter muitos produtos para atender a todos os gostos significa mais
estoque e mais gastos. E na internet isso não acontece, já que por lá é
possível encomendar um item e esperar por sua chegada, ou receber o item vindo
de algum lugar do país, não necessariamente de um mesmo estoque.
Foi assim que o modelo Amazon se
fortaleceu, oferecendo todo tipo de título (agora não se limitando mais apenas
aos livros) e inclusive desbancando muitas livrarias físicas. Somado a um
sistema inteligente de recomendação de itens que estimula um ticket maior
durante a compra e uma entrega rápida e precisa, todos os outros se viram
ameaçados e alguns até deixaram de existir. Igualmente aconteceu com o
conhecido modelo Netflix, que inicialmente foi desacreditado, na época das
locadoras de filmes. Hoje, muita gente não consegue imaginar a vida sem a
possibilidade de escolher o filme que quiser na TV pagando apenas uma
mensalidade fixa.
Diante de tantas opções, da
possibilidade de personalização e das transformações drásticas na comunicação
em massa e na mídia tradicional (até o próprio novo presidente transmitiu seu
discurso de vitória por uma live do Facebook antes de falar com a TV), algo
novo está surgindo: é o fim da era das referências em comum e também do que
chamamos de bullshitelling (um apelido carinhoso para as lorotinhas do
cotidiano travestidas de storytelling). Isso quer dizer que cada um vai seguir
quem quiser e que muitas vezes será autenticidade do outro que o fará tomar
essa decisão.
É claro que as referências em
comum nunca foram uma verdade absoluta, afinal, cada região, país ou povo
sempre teve e terá suas própria cultura, referências, gostos e sotaques. Até
mesmo um texto para ser plenamente entendido exige intertextualidade (o nome
dado à relação que se estabelece entre dois textos, quando um texto já criado
exerce influência na criação de um novo texto. Um exemplo fácil? Tente
contar uma piada que envolve um contexto de sua cultura ou país fora dele, provavelmente
não será bem entendido se não precedido de uma explicação).
Entretanto, agora as pessoas já
não dependem do que lhes era imposto. Elas escolhem o que ler, o que seguir e o
que acreditar.
Há vinte anos os reality shows
faziam sucesso porque naquela época era praticamente impossível descobrir como
era a vida de alguém em seu dia a dia. Hoje eles perderam a graça, porque
stories no Instagram revelam a rotina de quem deseja se expor, em tempo real, e
ainda trazem mais verdade do que os reality shows, porque as pessoas se sentem
(claro, não generalizando), mais à vontade para serem quem são ao saberem que
atingem um público nichado, que aprecia aquele tipo de conteúdo.
Por tudo isso a própria
publicidade vem precisando se reinventar. Para atingir o público desejado não
basta mais colocar o comercial na TV, pode ser que ele não esteja mais lá. Às
vezes, nem mesmo no próprio Facebook ele esteja, inviabilizando a compra de
mídia paga por ali. Pode ainda, que um determinado produto sequer precise ser nacionalmente
ou mundialmente conhecido para fazer sucesso, ele pode ficar restrito a um
público ou região e ainda assim gerar muito sucesso e lucro, e está tudo bem.
Se as regras do jogo mudaram e a
verdade cada vez mais parece vir à tona, nos vimos diante de um desafio: como
ser visto pelo público que desejamos se anunciar para as massas ou nas mídias
tradicionais já não é mais suficiente? Ou ainda, como lidar com pessoas que já
não possuem mais as mesmas referências em comum? Ou que querem produtos personalizados?
Mais do que nunca os nichos estão
consolidados, e não estamos apenas falando sobre produtos para atender à gostos
ou necessidades específicas, mas também de gente. Nicho de gente. Jovens já não
assistem mais televisão e não leem jornais. Tampouco consomem as mesmas
revistas que seus pais (que ano a ano decaem, já que as pessoas já não querem
pagar por um bloco de informações físicas se podem encontrar informação
parecida e gratuita na internet).
O jeito de consumir informação
mudou e agora a própria internet é feita de pequenos grandes sucessos, muitos
deles seguidos por milhões de pessoas. Eles arrebanham multidões, mas talvez
você nunca tenha ouvido falar deles.
A internet virou um submundo,
parece que uma vida paralela acontece por ali. Ao mesmo tempo, parece não
existir mais distinção entre o real e o virtual. Tampouco é possível separar
vida profissional de pessoal, de modo que cada ação sua pode ser vista ou
reverberar, ainda que você mesmo não esteja na internet - outras pessoas estão
e de seus smartphones podem registrar o que quiserem.
Diante desse enorme desafio,
pessoas comuns ganharam igual ou mais relevância que marcas, antes consideradas
impérios. Ao exibir seu lifestyle ou produzir conteúdo nas redes, passam a ser
seguidas por milhões de pessoas que se identificam com aquilo. E é aí que as
marcas começam a apostar neles como porta-vozes para falar com seu público,
porque elas próprias já não estão mais conseguindo.
Um influenciador empresta sua
imagem e sua verdade para falar sobre um produto, alguns conseguem fazê-lo de
forma mais natural e contextualizada, outros não. Entretanto, a grande verdade
é que estamos também assistindo à grandes teatros, às vezes com altas
produções, afinal, essas pessoas aprendem desde cedo a interpretar e fazer
parecer real o uso de um produto que nem sempre é, de verdade, usual ou
utilizado por aquela pessoa. Acaba valendo mais quem souber convencer da melhor
forma, seduzidos pelos valores oferecidos por empresas que estão desesperadas
para vender seus produtos aos seus nichos.
E aí começa o embate, o conflito
entre o ser verdadeiro e autêntico, mas ao mesmo tempo encenar.
Atualmente podemos perceber que o
Instagram concentrou todos os focos nesse tal submundo virtual. Centenas de
influenciadores que concentram milhões e milhões de seguidores publicam sua
rotina diariamente. Em muitos casos, regada à festas incríveis e cenários
paradisíacos de fazer inveja aos pobres mortais que os assistem e não podem
viver uma vida igual. As fotos são realmente de tirar o fôlego.
Parece que o story e as fotos de
feed incríveis viraram o quintal de casa. Parece mesmo que todo mundo está
vivendo aquilo - menos eu, menos você. Parece normal usar à tiracolo uma bolsa
Dior ou um look todo Gucci. Parece esperado e imperdível a virada do ano em
Jericoacora, Arraial do Cabo ou São Miguel do Gostoso - só você não pode estar
lá.
Esse fenômeno me deixou com a
pulga atrás da orelha, porque olhando meu feed do Instagram a depressão bateu.
Eu senti que todo mundo realmente estava de férias nesses paraísos, que todos
eram magros e esculturais, que todas as piscinas tinham boias infláveis
gigantes em forma de animais e que todos os looks eram perfeitos, apenas a
minha vida era normal e pacata, regada à um passeio na rua com o cachorro pela
manhã e no máximo um espumante com a família naquela ceia ou churrasco
simples-e-rasteirinhas-com-short para comemorar o natal ou o ano novo. E de
repente, quando eu perguntei no Linkedin quem estava de férias e quem não
estava, li em 85% das respostas que estavam trabalhando muito e que nem de
longe passariam nesses lugares incríveis. Percebe como nos enfiamos em bolhas e
como o Instagram contribui para ferrar nossas mentes e nos deixar mal? Não
vemos os bastidores e como as fotos e os vídeos parecem ser o todo, ignoramos o
fato de que talvez apenas 5% daquele dia tenha sido tão incrível como pareceu,
não vemos os conflitos por trás da cena.
O modelo mudou tanto que artistas
que antes não teriam chance alguma na televisão ou com uma gravadora
tradicional, agora são grandes sucessos, eles não precisam mais de
intermediários tradicionais, apenas de uma plataforma para publicar seu
conteúdo, e isso é ótimo. Nós todos agora temos voz realmente, mas é preciso
ser cuidadoso com o buraco no qual estamos entrando.
Países e cidades que precisam
promover seu turismo agora pagam influenciadores para viverem experiências e
compartilhá-las em suas redes sociais, gerando em outras pessoas o desejo de
também viver aquilo. O problema? Como muito é forjado para parecer mais incrível
do que de fato seria (afinal, os lugares são lindos mesmo), ao chegar lá você
provavelmente não viverá de modo parecido com quem te inspirou a ir. Você não
se hospedará no mesmo hotel, não terá o mesmo suco na piscina, não conseguirá
fazer as mesmas fotos.
Hoje qualquer pessoa pode
produzir conteúdo e atrair seguidores, criando submundos que muita gente nunca
chegará a descobrir a existência. As referências em comum, definitivamente
morreram e parece que já não precisamos mais delas mesmo para nos comunicarmos.
Todas essas transformações não podem ser impedidas, estamos seguindo o fluxo
normal da inovação, que sempre aconteceu. Muitas delas podem ser usadas de
maneiras positivas em nosso favor. Mas todas elas aumentaram a necessidade de
nossa autoresponsabilidade: ninguém mais vai filtrar por você o que ver ou o
que não ver. O que é verdade do que não é. E só você poderá cuidar de sua mente
para não entrar em depressão diante de um mundo virtual perfeito do qual parece
que só você não faz parte.