“O excesso de informação nos transforma, cada vez mais, em outro tipo de espécie. Uma espécie que dialoga e costura o conhecimento com outros tipos de inteligência: a humana, a artificial e a da biodiversidade, via internet das coisas”, explica Massimo Di Felice, professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo) e diretor do centro de pesquisa Atopos, onde coordena estudos sobre redes digitais. “A confiança pressupõe receber bem algo de uma fonte segura e esta forma unilateral de comunicação já não existe mais [pense na crise política e sua repercussão nas redes sociais]. Passamos a checar os dados, juntá-los e associá-los a outras informações, construindo assim um novo tipo de narrativa.”
Isso vale para conhecimento, notícias e, claro, para as relações pessoais. Nessa última aba, há quem limite a exposição e adote recursos de privacidade. Mas controlar dados ficou praticamente impossível numa era de hiperdocumentação, em que uma simples busca no Google pode revelar onde você trabalha, em quais faculdades foi aprovado e até eventuais processos judiciais. Isso sem abrir o baú das redes sociais - um banco de dados com a vida do usuário -, onde geralmente há fotos, vídeos, check-ins, interações, marcações, gostos e opiniões. Não que antes tudo isso fosse secreto. Mas reunir tantos dados na era offline envolvia um processo muito mais trabalhoso e até indiscreto, envolvendo perguntas pessoais e inquisições hoje dispensáveis.
O usuário da rede (isso inclui você) está mais à vontade para compartilhar informações. E há cada vez mais gente (incluindo você, novamente) disposta a juntar esses dados para montar o quebra-cabeça e, na sequência, talvez desconfiar da solução.
Confiança é algo que se constrói e vários fatores podem ajudar nesse processo. Empostação de voz, expressões faciais e postura corporal são avaliadas nas relações cara a cara. Na mescla do online e offline que virou nossas vidas, também se leva em consideração o tipo de conteúdo postado, a forma de escrever, os emojis e as acentuações. Para a psicóloga Camila Campanhã, pesquisadora em neurociência sobre tomada de decisão social e confiança, a disponibilidade dessas novas informações ajuda a conhecer o outro de maneira mais rápida. Para o bem e para o mal - no caso de os dados não baterem.
“Numa relação presencial as pessoas tendem a se encontrar com frequência menor. Nas redes sociais, a interação tem outra velocidade, maior: é possível ver e falar com alguém todo dia, a qualquer hora. Assim vão aparecendo mais pistas que indicam se posso acreditar naquela pessoa”, explica. Ou seja: pegamos atalhos para viver histórias mais ágeis. Para a psicóloga, esse novo cenário está de acordo com a teoria de redução de incertezas - desenvolvida em 1975 pelos pesquisadores de comunicação Charles Berger e Richard Calabrese -, segundo a qual as primeiras interações entre estranhos baseiam-se nas buscas de informações. Quanto mais abertura, cordialidade e semelhança encontrarem, mais confiança terão um no outro.
Os próprios serviços colocam essa teoria na prática ao mostrar amigos e interesses em comum. Ou você nunca aceitou um pedido de amizade no Facebook levando em conta aquele bando de gente que você e o até então desconhecido compartilhavam? Tem também os ícones que confirmam a identidade de pessoas conhecidas (um tique azul) e sites que mostram a avaliação de outros usuários. Elementos que, juntos, criam um coro de “confie em mim” enquanto você navega. Em seu processo de evolução, a mesma internet que há alguns anos gerava receio (lembra da sua primeira compra online?) virou hoje uma plataforma de validação.
À medida que fica mais difícil esconder informações, a transparência ganha força – no sentido de exposição, e não necessariamente da “verdade”, considerando que há como editar a persona virtual. Di Felice, da USP, avalia essa abertura como um impacto radical na distinção entre o público e o privado.Antes, a definição baseava-se em limitações físicas. Hoje, na tecnologia: ao participar de uma discussão online deitado em sua cama, o sujeito ocupa um espaço público. “Além disso, há uma busca e um prazer para tornar público o privado. Você quer saber da vida de um cantor, de um escritor. E vai avaliar um político considerando suas posturas pessoais”, exemplifica.
Ele também descarta a separação entre online e offline: um completa o outro. Seguindo esta lógica, o especialista em redes explica que a reputação passa agora pela forma como um indivíduo, uma empresa ou um governo aparece na internet – esse conceito social vem da mescla de informações apresentadas no presencial e no virtual. Não há como ser confiável só na internet ou só no universo físico, como mostram as polêmicas envolvendo blogueiras quando estas enganam suas seguidoras. E as postagens inclusive já orientam a vida de seus protagonistas, tema tratado neste TAB sobre excessos em redes sociais.
Não é porque os dados estão lá, acessíveis e disponíveis, que ficou fácil consumir informações sabendo no que confiar. Na era pré-internet, elas eram mais escassas e vinham “prontas”, sendo pautadas, transmitidas e explicadas por fontes oficiais ou qualquer outra que tivesse seu respeito.
Se confiava na fonte, você imediatamente acreditava no que era dito. Já no mundo em rede, a construção da informação baseia-se em uma enorme quantidade de fontes e opiniões das mais diversas. A “verdade”, seja ela qual for, ficou menos óbvia. Algo parecido acontece no âmbito pessoal, considerando as muitas alternativas para conhecer alguém melhor – mesmo que seja através de uma tela.
O risco aqui é a forma como cada um entende aquilo que vê. “Você pode controlar como se apresenta virtual e presencialmente, mas não dá para controlar como o outro interpreta essas informações”, explica Ana Luiza Mano, psicóloga do NPPI (Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática) da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Na prática, compara, uma simples mensagem de “oi” pode ser recebida com alegria ou raiva: depende do contexto, humor e personalidade do destinatário. Claro que isso também acontecia nas épocas marcadas por cartas e telefonemas, mas não escala como é hoje. “Na internet, é muito fácil fantasiar. O outro, que poderia sinalizar algo com um sorriso, uma queixa, um olhar torto, não está fisicamente ali. Então é possível pirar, às vezes, em cima de uma ideia.”
Ela mesma passou por isso, quando especularam por que tantos check-ins em um cemitério (de onde Ana Luiza virou prefeita no aplicativo Foursquare). As interpretações poderiam ser muitas, mas o motivo era morar perto do local e não querer revelar seu endereço exato. Só isso. Se a variável das interpretações é humana, segundo ela explica, como confiar naquilo que se vê? Da mesma forma que vem acontecendo até aqui. “A confiança é parte de uma questão humana e passa agora pelas ferramentas atuais que estamos usando. Não dá para acreditar em nada online com uma fé cega, da mesma forma que não deve se fazer no presencial”,
Mas as ferramentas estão aí e muitos adquiriram o hábito de recorrer à nuvem para saber onde estão pisando. Há quem chame de stalkers (perseguidores), apesar de a prática, cada vez mais comum, manifestar-se em diferentes intensidades. Você pode não vasculhar álbuns de férias no Facebook nem contar (e memorizar) o número de curtidas naquela foto de seu parceiro. Porém, certamente já verificou se aquela mensagem sem resposta no WhatsApp chegou a ser lida. Algo que exige pouco esforço se comparado à era offline, quando checar informações significava conversar com pessoas ligadas ao fato e ir fisicamente a diferentes lugares para confirmá-lo.
A engenheira Gabriela Silva*, 41, abusa das redes sociais para confirmar informações sobre os homens com quem se relaciona. Descobriu que um deles tinha outra “ficante” – algo sempre negado – quando o casal foi marcado na foto do passeio em grupo. Também é dela a história da festa de aniversário, no início deste texto. O atual parceiro disse que não poderia vê-la, pois iria à festa do sobrinho. “Baixou a Interpol em mim. Fui procurando, entre os centenas de amigos dele, quem poderia ser o aniversariante. Encontrei, e a data de aniversário batia. Por sorte a página não era bloqueada e vi as fotos do parabéns, que confirmaram tudo.” Ponto para o investigado.
Perfil parecido tem a assistente administrativa Marília Felisdório, 24. Usuária do aplicativo de paquera Tinder, ela sempre puxa a ficha antes de marcar encontros presenciais. Vai do Google ao Linkedin, passando por Instagram e Facebook, para saber o que esperar daquela pessoa – numa espécie de spoiler do primeiro encontro. “Esses recursos ajudam a confiar e a desconfiar. Se eles não existissem seria pior, pois ficaria mais difícil confirmar tudo.” Às vezes, não precisa nem procurar. No Carnaval de 2015, o Facebook de Marília exibiu um check-in do então namorado. A marcação feita por uma moça mostrava que o casal estava em Curitiba, sendo que o destino informado era o interior de São Paulo. Na companhia do pai doente.
Se serve para a vida pessoal, vale também para o ambiente profissional. Tanto que muitos recrutadores aderiram às redes sociais para avaliar candidatos. Coordenadora do curso de analista de recursos humanos da FGV-RJ (Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro), Anna Cherubina define essas plataformas como otimizadoras dos processos de seleção, numa tendência em que não há como voltar atrás. “As duas ferramentas fundamentais são LinkedIn e Facebook. A primeira é para recrutar, porque dá uma visão daquela pessoa sob aspectos profissionais. Já a segunda serve para selecionar. E é onde as pessoas geralmente morrem na praia: não adianta estar tudo redondinho numa rede e deslizar na outra.”
Deslizar, aqui, vai desde a publicação de excessos (um conceito muitas vezes subjetivo) até informações muitas vezes desnecessárias – como a candidata descartada porque manifestou, em sua página, simpatia por seitas macabras. A usuária tem, sim, o direito de postar o que quiser. E a empresa, de escolher o perfil do contratado. O quesito credibilidade, no processo de seleção, também passa pela rede de contatos (no melhor estilo “diga-me com quem andas...”). “As pessoas se atraem por afinidade, e a rede é um indicador de quem é aquele profissional. No Linkedin o importante não é quantidade, mas sim ter pessoas que agreguem”, ensina Anna. (...)
A série britânica de TV “Black Mirror” retrata a transformação das relações num futuro em que os humanos registram absolutamente tudo com suas lentes de contato. Essa tecnologia do episódio “The Entire History of You” (toda a sua história, em tradução livre) pode não estar muito distante, considerando que Google e Samsung têm projetos de lentes inteligentes – a patente da empresa sul-coreana inclui uma câmera embutida. Quer saber se foi bem na entrevista de trabalho? Reprise-a no telão da sala para os amigos. O marido ou a mulher jura que não flertou? Volte para a cena do jantar e tire a prova. É a ideia de um futuro em que uma imagem pode, mesmo, valer mais do que mil palavras.
Fonte: http://tab.uol.com.br/confianca/#tematico-1
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